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Um conto

Anna Pimenta


Quando eu era menina num vilarejo chamado Vila das Antas minhas naves espaciais eram as árvores centenárias que haviam no adro da capela de Sant'Ana. Éramos eu e um amigo de infância os "chefes das missões intergalácticas" e carregávamos a patota toda em nossas aventuras. 67m,k8,, 6,66,k , ;                               7 otmfmfffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm;;;..

Nesse vilarejo morava um farmacêutico, um médico. autodidata, que fazia de pequenos curativos até os .partos, num lugarejo onde tudo era tão precário devido a ganancia dos homens... esse fazia a diferença.

Quando prefeito, esse senhor, fez uma praça em mosaico de mármores em vários tons nas sombras que as árvores proporcionavam...

A esposa desse ser tão cheio de conhecimentos e mistérios era uma grande doceira e bordadeira e também criava seus desenhos..

Os dela, em ponto e cruz, como se pintura fossem, não dependiam da luz.

Quando eu, em ato flagrancial, era avistada por ela perto de suas compotas de mamão com coco, os olhos que nunca miravam, de soslaio apenas, diziam-me:

"o avesso, travessa! Preste atenção no avesso!"

Eu que vivia atravessando os quintais das casa dos parentes nas férias  ouvi certa vez algo que atravessaria as existências e versões das existências:

"Os meus avessos não ficam tão perfeitos como nos bordados de sua mãe."

O que tinha abandonado a politica anuiu com a cabeça..

Lição essa que uma poetisa que o tempo tornou carrancuda ensinou à doceira e esta,  a mim, transmitiu: "o belo, o verdadeiro e o justo podem até aparentar estar no que seus olhos fixam de imediato, mas só se revelam se, viradas do avesso, continuarem a despertar o mesmo encantamento. O verdadeiro contentamento que a arte proporciona se sente até pelo avesso".

Ter tido uma infância livre, passando as tardes no topo das mangueiras ou jabuticabeiras, escalando todas as outras espécies de  majestosas e generosas - nas "naves"-  olhando as formas que os mosaicos podiam formar com a luminosidade que  as nuvens, ao dançarem no céu, permitiam revelar e ocultar, me acostumou a questionar sobre tudo que via ou se me era permitido ver; nos jogos de Maya  ouvir o vento é importante, e desde tenra idade já intuía que ele também podia me ouvir.

Refletir sobre as histórias que o velho boticário contava-me era um de meus passatempos prediletos. Os contos...  vez ou outra, era sobre um povo indígena que vivera por aquela recha, em tempos remotos, que ele passava a tarde a falar... Ele despendia  as manhãs entre os livros e anotações e me informava sobre a necessidade de se reconhecer o solo em que se pisa, bem como de não temer o sombrio. Contara-me  que a tribo enterrava seus mortos onde era localizada a praça em meio a vários ritos e rituais..

Sempre me intrigou o porquê dele ter feito a praça, quando autoridade municipal, naquelas exatas coordenadas e ter me contado. Inspirado na doçura da esposa ou na magia dos antigos nativos que ainda podia ser sentida perto do Rio Paraíba do Sul que atravessava o vilarejo pra introduzir em mim a curiosidade por mistérios e a reverência pelo que não deve ser profanado? Um dia ele ainda há de me explicar! 

Na pracinha havia bancos doados pelas famílias "tradicionais" e neles se encontravam os sobrenomes insculpidos, aquilo imputava em meu ser o peso da tradição e me fazia o queixo erguido, posto que se tinha história não apenas no DNA, mas no ar que supria meu corpo para a combustão da vida.

Havia uma segurança peculiar entre armazéns e sobrados e nos homens e mulheres que lá laboravam e habitavam - suas histórias e nomes estavam  nos bancos em que todos os descendentes se sentavam. Abaixo do solo,  outras histórias de luta, resistência e magia continuavam ecoando e cantando para o vento. Quem as ouviu, ouviu...

Em um certo inverno de manta estrelada, ao chegar no vilarejo, ainda muito pequena, vi toras e toras de árvores cortadas amontoadas em frente ao adro da antiga capela. Senti uma dor no coração como se tivessem me arrancado o mapa que dava acesso aos vértices de outras realidades e dimensões.

"Minhas amigas tinham sido assassinadas!" - 

Foi meu chamado interno.

Não se nasce filho de quem se nasce apenas por opção e tive certeza disso naquela oportunidade.

Indaguei em alto e bom som com a arrogância dos meus 9 anos de idade, a qual nunca perdi e não por pretensão e sim por necessidade, quem tinha sido a criatura que mandara fazer aquilo.

As lágrimas escorriam enquanto impregnava-me a certeza de que os peões são e sempre serão apenas cumpridores de ordens. 

O curandeiro farmacêutico, o qual chamava de tio, disse-me:

- Acalme-se magrela! "Nanã" já está entristecida por demais...

O olhar do senhor curandeiro era de perplexidade e nele também o haviam cortado n'alma. 

Eu numa ousadia que sempre me foi inerente perguntei de novo, ao povo que se juntava pra ver o "espetáculo", quem era o autor do sacrilégio.

Alguém soprou o nome aos meus ouvidos ou os silfos me disseram...

Todas as árvores que os descendentes de meus ancestrais poderiam brincar estavam mortas no chão porque um funcionário municipal de alguma pasta da época achou mais eficiente, pra acabar com uma "praga de bichanos sazonais", cortar as árvores majestosas, as quais já haviam sido envenenadas. 

EU, ÀS 9 RODADAS DO SOL, FIQUEI INDIGNADA! 

Como já disseram os seres de bem do século passado que por aqui não quiseram se demorar mais e foram resgatados: "o mundo se divide em INDIGNOS E INDIGNADOS".

Minha mãe muito nervosa pelo meu estado perguntou a autoridade competente e hierarquicamente superior do vilarejo se algo seria feito, e o mesmo respondeu que fora realizado o procedimento necessário, que iriam plantar árvores frutíferas, de acordo com a conveniência e a oportunidade , "outras lá", num desdém estarrecedor.

Nunca as vi, como nunca mais ouvi pássaros nas alvoradas ou corujas brancas em noites de lua cheia pela praça.

Atualmente os sábios de minha infância, alguns pensam, descansam em paz.

Paz?!

Eles veem, como qualquer um que se permita sentir, esses seres que cortam árvores pelas ruas e redes defendendo partidos políticos e suas ideologias indefensáveis, instigando o povo a engolir o projeto de lei sobre a terceirização trabalhista como se isso fosse desenvolver o país.

Tomam pra si discursos de Bolsonaros e Cunhas e de demais inomináveis do cenário da vida pública clamando por Intervenção militar etecetera...como se em algum momento pós ditadura militar tivéssemos nos livrados do Partido Militar e suas rotas e de seus negócios e negociatas.

E sempre em nome da ordem, do desenvolvimento e do progresso - deve ser em cumprimento aos mandamentos do grande pedreiro ou como gostam de pompa, arquiteto - por isso sempre preferi carpinteiros.

E uso o plural para designá-los, porque a omissão é a forma mais perniciosa de fomentar o mal e como existiam e existem omissos - todos peões, torres, bispos e cavalos alimentando a máquina com o suor e o sangue de seus irmãos. Que Deuses de Panteões esquecidos tenham misericórdia. Gaia não terá!

Contaram-me, anos depois, na estação em que o velho  Paraíba subia e invadia casas construídas sem respeitar os ciclos e o espaço do Rio, que uma guria muito ousada tinha metido o facão em todos os portais e janelas de madeira da casa que o tal assassino das almas das árvores estava construindo. "Era o que eu podia fazer", disse-me ela quando confirmou a história assumindo o feito cheia de orgulho já na adolescência;

-"medo é uma palavra que desconheço".

(que apliquem o código de Hamurabi os defensores da diminuição da maioridade penal -  ela era uma delinquente. Uma transgressora da lei e da ordem.)

 

Hoje em dia, após vinte rodadas do sol,  ouvi dizer que ela se tornara uma jurista antifascista - eis o mistério da vida.

Ela argumentava ainda menina: "a criatura não havia cortado a sombra e impedindo pra sempre o som de vento por galhos no alto, bem como a magia das folhas secas pelo chão ao qual todos tinham direito de desfrutar nas estações específicas?"

Argumentava....

(Ela não me indagava, pouco se importava com o que qualquer um pensasse...)

e continuava:

-"eu cortei a madeira que ele quis só pra si da casa dele!"

Por minha vez, que não queria entender de regras idiotas e idiozantes desde nunca, mas senso de justiça e de coragem nunca me faltaram,  entendia que era simplesmente o exercício da autotutela, exorbitando das próprias razões; por certo havia um certo senso de "se ninguém faz nada, eu faço." Ojolá!

E, confesso, ela me inspirava.

Queria ter sido aquela guria e quis sê-la pra sempre.

A guria que cavalgava seu cavalo Mascarado na companhia de seu cão chamado Duque.

O que ocorreu como final da história do corte da madeira da casa do falsário não me recordo;

há época o pai da abusada era sujeito homem, ou todos achavam que o era, mas tinha  uma esposa que o sustentava moralmente e intelectualmente,

uma poetisa de sorriso largo e raciocínio tão rápido quanto a língua afiada  (que Deus a tenha, assim como aos seus filhos que partiram tão jovens - talvez tenha aprendido com eles sobre caráter e  sincericídio e a dizer  palavras que não são para ficar por serem ditas, mesmo que custe ser apelidada por carrancuda ou maluca).

Ninguém, até hoje, respondeu por crime de improbidade administrativa, responsabilidade ou por crime contra o meio ambiente lá no vilarejo. Ainda....
Tempos mais tarde até a praça destruíram; 

A vila e todo seu encanto haviam desaparecido. O rio, represado.

Os sábios partiam um a um... a cada movimento de translação iam-se embora seus sorrisos e suas histórias; foram-se acabando os leilões, gincanas e festivais da canção. 

Não nasci naquelas paragens e  meus leões a serem cavalgados estavam em outros lugares ...

percorreria o mundo antes de vê-lo colapsar...
As histórias daquele prefeito farmacêutico, da sábia carrancuda e seus três filhos homens e daquela guria sempre me confortavam quando olhava em volta e me via sozinha na multidão, assim como tantos outros personagens de minha infância,...

Era a lembrança do colo e dos bolos da "comadre" que me acalantavam.

Dentre todas as muitas coisas poderiam ser eternas, os bolos de cenoura com cobertura de chocolate de tia Leonor em meus aniversários e o salgado de mil folhas de ameixa e bacon de minha mãe artista escolhida poderiam.. O cheiro e o aconchego da casa delas..

Carregaria em minha voz algo que me fora ensinado  por muitas mulheres  através de seus olhares e seus causos. Ecoaria por muitos outros vales meu canto solitário e feroz, mas as cordas do meu violão embalariam apenas o meu sono.

Apenas mar, cachoeiras e montanhas sentiriam o pulsar do meu corpo e a cadência de minhas lágrimas. 
As fontes de água doce que existiam na vila por todas as encostas, só se salvaram algumas poucas, por pequenos sítios e, como é macabra a sentença que a desonra e a profanação encerra, até nesses pequenos refúgios onde restaria condições de ressurgir a magia que dignifica, alas malignas se lançam em negociações fraudulentas para liquidar;  pragas em todos os locais do globo terrestre, mas naquela Vila o despudoramento para a apropriação indevida se dá com um destemor que causa espanto. (Recebo notícias dos meus ancestrais e todos andam estarrecidos e inconsoláveis).

Hoje pego em facões pra desbravar matas virgens sob a permissão e licença de quem de Direito em dias de alforria do sistema; meus instrumentos de trabalho são livros e canetas, eis o grande desperdício pelos desvios de curso necessários. Contudo, se preciso for, porque é chegada a hora de cada um tomar pra si o que lhe é devido, faço mandingas e rezas e escuto o aço de lâminas e projéteis assobiar no vento.

Eu também sei fazer o sangue pulsar em mim!

Tenho legado nas veias e salamandras dançam quando rodopio por entre fogueiras.
Quando um certo Deputado, ex BBB, levantou-se de seu acento em um voo comercial da Capital do País para o Rio de Janeiro dizendo que não viajaria ao lado de "gente perigosa"  achei um pouco exagerado o teatro, contudo me alertou o ato. Nesses últimos dias refletindo, lembrei-me da guriazinha - a rebelde travessa educada por uma poetisa.

Penso que o nobilíssimo legislador agiu da forma como se sentiu melhor, e não há incoerência ou demagogia em agir conforme grita o coração ou o estômago incomoda. São forças diametralmente antagônicas de fato que se embatem nesse aqui e nesse agora. É a luta do mal contra o bem seja lá a acepção que se queira dar a isso ou àquilo. A alma tem uma forma interessante de se expressar quando injuriada, vilipendiada, amordaçada. Doenças físicas surgem, acidentes ocorrem, tragédias acontecem - Hérnias de disco, câncer, diabetes , hipertensão....

Como dizia um personagem da teledramaturgia brasileira: "melhor morrer de morte matada do que de morte morrida.."

E parece, só parece, que os perversos e o omissos hão de fenecer.. de um jeito ou de outro.  

Para ficar avisado: eu não ando só! As gurias e guris, meninos da porteira e bordadeiras, os senhores das fazendas e os filhos dos filhos dos escravos, os índios, os ribeirinhos, as velhas carrancudas, doceiras e poetisas de muitas terras me acompanham. Eu não ando só!

Maio de 2015, Anta.

obs: em Persa Anta significa essência. Mas, Antas são mamíferos  de uma inteligência excepcional, não precisam dessa informação. Já antenses..

Se seguem tocadores de berrante são semoventes por essência? Eita fazenda!!

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